terça-feira, 29 de abril de 2008

Flashes

Vejo-me a olhar para o relógio ansiosa... são quase 8h.
Estará o Miguel já pronto?
A mala está arrumada desde 4ªf...
Não me posso esquecer dos "taparueres", do blusão novo para lhes mostrar...Olho para a minha mala pela milésima vez... Sim, já guardei os ossos para Yukie e a lata para o Tufas.
Relógio..."mas o tempo não passa?"
19:50 "Já não deve vir ninguém Rute, vamos fazer a caixa".
20h, finalmente!
E pronto, lá vamos nós, o Miguel com os ouvidos cansados de ouvir "despacha-te".
Paramos no Papa24, fast-food, porque tem mesmo de ser rápido.
Vamos pra Lisboa! Que saudades!
Caminho interminável...olho para os kms..."bolas,ainda vamos aqui?" Lembro-me de quando era pequena e martirizava os meus pais com repetidos "ainda falta mt?"
A ponte...que bom sem trânsito, vamos ao contrário.
Saímos da A5, já está quase!
Desço a Av.S.Francisco Xavier combatendo a ânsia de tirar o cinto.
Na minha rua, já vai solto.
Estico o pescoço e espreito para ver se já está alguém à porta.
Saio do carro atropelando os resmungos do Miguel "tem calma"
Abre-se a porta.
O Yukie sai disparado e transforma os seus 45kg displásicos em leveza de coelho, numa festa de reencontro de quem tem um coração cheio de saudades por matar.
Ela assoma à porta. Aquele sorriso...O meu coração consolado.
Dou os ossos ao Yukie,acalma-o e permite-me envolver o coração com o teu beijo "então miquelina?" perguntas-me...
Lá está o pai, cheio de sono, coitadinho, mas aguentando-se para me ver.
O Tufas corre para mim num miar arranhado de excitação e só oiço o seu ronronar, sentindo as unhas cravarem-se-me nos ombros enquanto "amassa", de tão sedento de mim.
E ele olha, enternecido...vejo no seu olhar o som do ronronar humano...
Deitamo-nos eu e ela, 3 horas depois de a empanturrar com as novidades enquanto me diz "amanhã falamos filha"...mas continua a ouvir-me, sempre, mesmo quando os olhos estão vermelhos de cansaço.
Adormeço,então, reconfortada. Tou na minha casinha, o sítio mais seguro do planeta, quarto a quarto com vocês.
Acordo com o sol dentro de mim, desço feliz, com a sensação ingénua de quem tem uma vida perfeita e eterna...
A mesa do peq almoço posta pelo meu pai e os pãezinhos q eu adoro e que foi comprar especialmente para mim.
Sol todo à volta, a casa cheia de vocês e de nós.
Alegria. Cor, mta cor.
Na despedida...a geleira cheia, o coração abarrotado, por esses f.d.s que esticavam e pareciam ter sempre mais dias que os outros. Não faz mal, não tarda mt volto...

De repente...um pequeno instante, uma fracção de nada e... acabou...
...para sempre!

A cozinha está preta. A mesa está posta mas não é para mim...não há luz. Preto e branco.
A casa cheia de um vazio q espreme.
Não mais vos vou ver à porta...não mais vos vou ver chegar...

Um novo acordar..."Amor, ouve um acidente em tua casa... os teus pais estão no hospital... a tua mãe é q está pior"

Caiu o céu?

Onde está o chão?

Chocada,desorientada,nervosa...petrificada por um medo nunca antes sentido...ainda assim, não imagino a dimensão do abismo que se aproxima vertiginosamente dos meus pés

A viagem, longa como nunca...Conto os quilómetros um por um...com medo do tempo....
Não vamos para casa...Destino-S.José.
Tenho dificuldade em segurar o coração no sítio qdo vejo aquele homem de touca e máscara aproximar-se....
"São os filhos?"..sim.."A vossa mãe tem mt poucas hipóteses de sobreviver..."

Como?

Gelo...cravado na espinha, estômago esmurrado...sinto esvair-me de mim...
..O coração sugado dura e cruelmente, de toda a esperança alimentada em 300Km infernais...
Sempre achei até aquele momento que "morte" não era possibilidade...e continuei a achar até...

"Não sabe do q fala, n a conhece...a minha mãe é imortal Dr.!"
"Ainda ontem rimos ao telefone...eu vinha cá amanhã...tenho a mala feita desde ontem... n pode..." Sopro com voz muda de alma tremida...

O mundo ficou plano?

A gravidade desapareceu?

Levem-me de volta para a minha vida!!!!

Alguém me acorde, por favor!!!!

"Só é costume entrar um...mas dadas as circunstancias deixo entrar os dois"....dadas as circunstancias....??!!
Não tenho coragem, desculpa mãe! Não tenho...e não tive....
O mano quer ir..."aquilo que vão sentir é 10 vezes pior que aquilo que vão ver"...
Como é que ver a minha mãe,de repente, pode ser mau...como??

O mano n foi....

"A tua mãe é forte Filipa, vai conseguir." Oiço...e acredito

Temos de ir ao outro hospital ver do pai, Filipa...

Pois....

Tonta, desorientada...destino-Santa Maria
Pelo menos com o pai não é nada de especial...assim parece...
Desinfectam-me e vestem-me com roupas q uso no trabalho, para o poder ver...por quanto tempo durará este dia surreal?...não estou em mim...
É o meu pai, a minha carne, o meu sangue, n lhe posso fazer mal
Beijo-o, abraço-o e falo com ele...mas ele n me responde
"Está em coma induzido, por causa das dores, não a pode ouvir"
Não sabes o q dizes, o coração n precisa de voz, repondo com o olhar..
É o meu monhezinho...
O enfermeiro olha-me...desiste perante o meu olhar desconsolador

Taquicardia...sabes q estou aqui!

Tem queimadura respiratória, prognóstico reservado...sim, pode morrer...

O último sopro de sangue esvai-se-me do corpo...

Como???

Também??!!

NÃO,NÃO!!!!!

Mas o que é isto???

Terá noção aquela sra dos pregos que pregou violenta e impiedosamente no meu coração??

Pouco importa...

O meu irmão pontapeteia a parede. Vomitei a informação médica com o choque q me causou, n tenho filtros para lhe pôr. Os olhares na sala n sabem disfarçar o q a alma n pode dizer, o que o coração não sabe mentir...

De repente....o tempo parou...o espaço descolorou

As 3 semanas a seguir...n sei..não sei mesmo.

"(n sei quem)ligou amor...a tua mãe..." NÃO,NÃO,não digas....

"Bom dia, é para saber do meu pai"...silêncio..."É melhor vir cá..."

Mas...
...quem?...como?...

Funerais...2...com 18 dias de intervalo.

PLURAL???

Não há ninguém que afixe aqui um sinal de proibido?!

Será possível descrever isto...não...o cérebro defensor n deixa a alma discernir...para q o coração aguente...

Na maior parte do tempo...ainda n acredito...
...Que não vou voltar a acordar naquela casa com eles...

...Que aquele tempo acabou.

Lembro-me da minha mãe, agarrada ao rolo fazendo os bolos de natal...os meus anos...a refilar com o pai por todas as prendas "foi o último ano deste disparate Rui"..ele sorria com aquele ar e dizia sim, qdo todos sabíamos q era mentira... Este ano foi verdade...
"Depois é para os netos"...que não vais abraçar...
A casa cheia de gente, o convívio do almoço de domingo, as tardes no quintal...

Não consigo conceber que esses momentos não se repetirão...

Olho para os quadros que ela me bordou...para tudo o que me deram...como? Como posso acreditar?Vejo-os nas tarefas mais simples que fazem parecer os humanos imortais....
Oiço as pessoas dizerem que este tipo de acontecimento muda a perspectiva de vida de forma radical...
..n é verdade...ninguém pode conseguir viver achando q isto pode acontecer...
Ninguém pensa"olha, agora estou a varrer a casa, mas a seguir posso morrer"

Além do que...
...acho q o tempo ainda vai somar mts dias, meses, talvez até anos, até q eu realmente perceba e interiorize o q me aconteceu...

Para já, alterno entre o sonho e o real...

Ás vezes de noite,deitada, fico a imaginar aquela casa vazia, escura de ausência. E doí...flashes de luz da vossa imagem...um frio doloroso, angustiante, arrebatador sobe-me á garganta...são os momentos em que a verdade se revela e me espeta o real na alma e no coração...e doí,mt,crava, rasga, remói...

A mente baralha-me mts vezes...ás vezes nem sei quem choro...mas pior, é que na maioria das vezes não choro nenhum deles...mas sim a violência da mudança que implica a perca dos dois...

Gosto de imaginar que acordo ali...bebo um pequeno almoço de memórias e revitalizo com elas as forças que me fazem seguir em frente.

Orgulhosa da vida que tive e do sangue que eles me deram, sabendo que a cada passo quero viver e honrar o que eles fizeram de mim. Legada de uma vida forte e marcante, que espero longa e feliz, desejando que quando chegar a minha hora, também eu tenha deixado nesta terra milhares de boas recordações que permitam aos outros seguir...sabendo que estarei sempre aqui.

1 comentário:

Anónimo disse...

50cm:

Nunca desistas.

Ao te sentires numa situação difícil e tudo for contra ti, até parecer que não és capaz de aguentar nem mais um minuto, nunca desistas, porque é exactamente esse local e essa a hora em que a maré vai mudar:
Se quisermos o arco-íris, temos de aguentar a chuva.
Bjs gorrrrrrrrrrrdos.